sexta-feira, 14 de março de 2025

CHÃO DE TIÃO

Então, Tião teve uma tempestade de ideias de sair pela Serra Dourada para coletar arnica. 

Sua cachola debulhava os dias, que ele sofria com a precisão da rodilha de filharada judiada para sustentar. 

Tião saiu cedo, sedento de mundo, que parecia querer dele se vingar. 

Não aceitava aquela sina que carregava, em ruína desde criança, sempre a pelejar. Sua filharada ficava em farrapos, de boca aberta, buscando e contando a hora certa para aparar migalhas e a barriga forrar. 

A queimada provocada por promotores, usurpadores de terras minguadas de gente miúda e de respeito, dilacerava seu peito. 

Fios de fogo, feitos com jeito, chiando em chamas flamejantes, cheias e sedentas, prontas para tudo queimar e para matar com gosto, naquele mês de agosto, tudo que encontrasse no caminho daquele lugar. 

E lá se foi o ninho de passarinho, pés de pequis, bocaiúvas, mama-cadela, marmeladas, jatobás e todos os outrora fartos frutos que floriam e prometiam promissoras colheitas para festejar. 

Do quintal surgiram cinzas serpenteadas de pés de mangas, abacates, goiabas, bananeiras, canas e outros plantios da roça que enchiam os olhos de gosto e beleza para colher e se fartar. 

Por sorte, a casa de adobe o fogo não atingiu. 

Por sorte, naquele dia, ele e a família em romaria marcharam para a cidade para cumprir promessa feita por bênçãos recebidas e rezar ladainhas na procissão. 

O fogo chegou com a boca quente e escancarada, engoliu a escuridão e devastou a região. Matou o verde e toda a criação. Consumiu o pequeno assentamento, que fornecia alimento para a família e ainda sobrava para fazer feira na cidade da região. 

Tião não tem tempo para pensar com precisão. 

A pouca esmola do estado angustiava seu coração. 

Todos assentados, de olhos arregalados, assustados, um a um, abandonaram a região. Tião, teimoso, da terra não quis abrir mão. Resistiu aos trocados oferecidos por um grupo de gente graúda, donos de maquinários pesados que engoliam a região e deixavam tudo em devassidão. 

E na ânsia de catar arnica, vergateja para fazer garrafada, o ofício que aprendeu quando criança com seu avô, repassado de geração em geração, saiu com sacolas nas mãos. Foi firme e determinado em sua intenção. Não seria usurpado e roubado de um legado pelo qual sua família lutou. Uma terra abandonada, deixada sem serventia e de nada valia na região. Por gerações ocupada, gleba meticulosamente desmembrada. Doadas às famílias com precisão e disposição para plantar, colher e produzir na região. 

Mas as terras caíram na mira de olhos gananciosos que perturbavam os moradores com ofertas medíocres e palavras de enganação. 

Tião tinha razão de levantar sua voz e lutar pela terra, pela família e pelo legado de luta e conquista da região. 

Saiu cedo, ciente de que a serra sempre seria generosa em sanar sua situação. Sementes de plantas medicinais eram fartas na região. Prometeu à sua mulher Araci que, ao cair da tarde, poderia se ver apontar no alto do morro que guardava o grande toco seco de carvão da grande árvore que outrora era um esplêndido pé de jatobá. 

Veio a tarde, caiu a noite, nasceu o dia, e mais um dia e outro se seguiam. A família recolheu o que sobrava de suas migalhas,  quinquilharias e partiu da região. Há quem diga que a onça da serra, em caça para sustento de sua ninhada, assim como Tião, confrontou o coletor de ervas e fez dele uma farta refeição. 

Outros dizem que olhos gananciosos já o seguiam e esperavam, em espreita, a ocasião perfeita para sumir com o homem em cova rasa, depositando o desafeto no alto daquela serra, sem lápides ou caixão. 

Outros dizem que se cansou da família e, sem rumo definido, buscou outra direção para reiniciar seus sonhos de construir uma vida nova, sem amarras, sem esposa descontente, sem filhos doentes, que, com olhos butucados, sem uma palavra, cobrassem por solução. 

Ainda hoje, quando as chamas clamam e chiam no chão com clarões, como chuvas torrenciais, quentes, que chumiscam em toda a terra, consumindo e devorando a região, muitos caboclos, sem palmo de terra e servindo como serventes, onde antes estavam suas pequenas glebas, revolvem os cascalhos para catar para os patrões os minérios escapulidos das pesadas máquinas que sangravam a terra, enterravam olhos d’água, colhendo e ceifando o que podiam do lugar, sem nada semear ou produzir. Nada para plantar, tudo para retirar. Cada coletor, com olhos marejados por ter sido desprovido da terra, relembravam, em prosa, os momentos de um tempo ali vivido. De um tempo querido, de um tempo de comunidade e amigos que viviam a se ajudar, celebrar a colheita, a amizade, a fraternidade. 

E entre as rodas de pequenos descansos para comerem das marmitas magras fornecidas e, em pagamento, descontadas pelo patrão, sempre falavam do Tião. 

Tião, que teimoso e tolo, saiu atormentado, tentando de todo jeito e trejeito travar, sem trégua, briga com gente graúda, esquecendo sua pequenez. 

Naquela queda de braço, sem força, entrou em descompasso, como se fosse uma folha de papel encardido de pouca serventia. Virou labareda minguada, sem somar significado à pretensão de quem tinha dinheiro para dominar toda a situação. Fazendo trombas de raios, varrendo e deixando desnudo todo o chão, sem qualquer plantação. 

Tião, Tião! O que a história te reservou na ninharia de sua vida então? 



Helena Aparecida Damásio - Coronel PM

Acadêmica Fundadora da Cadeira    58


64 comentários:

Coronel Divino Alves disse...

Helena vc sabe que amo a forma como se expressa desde a época que vc era aluna sargento , lá na Academia.
E hoje vc nos presenteia com esse texto que é uma crítica social que expõe as desigualdades e os conflitos enfrentados por comunidades rurais, destacando a resistência e a resiliência dessas pessoas em meio à exploração e à destruição de seu modo de vida.
Top D+

Anônimo disse...

Deus te te abençoe prima maravilhoso

Anônimo disse...

Maravilhosa! Leitura agradável e envolvente! Texto lindo! Parabéns prima 👏🏻

Anônimo disse...

Parabéns Helena 👏👏👏

Anônimo disse...

É a história de tentos aventureiros sonhadores.
Todos, sem percebermos somos assim, arriscamos nossas vidas por sonhos ou ficamos falando dos que arriscaram.
Sempre existirá o explorado e o explorador.

Anônimo disse...

Helena,gostei do modo q vc expôs um problema tão sério e desumano como a desigualdade social. A cada dia se superando e encantando os leitores, hein!?

Anônimo disse...

Fantástica ,na definição das lutas tão comuns e invisíveis!

Anônimo disse...

Espetacular

Milene disse...

Muito bom!

Anônimo disse...

Excelente texto...

Anônimo disse...

Outrora tive a enorme honra de compartilhar com você os mesmos bancos da faculdade .
Texto maravilhoso que vem trazer á tona um grande problema social,econômico e de grande repercussão nesta nação, redirecionando palavras que transbordam conhecimento dos problemas que degeneram e margeiam este país .colocando-o numa posição de destaque mundial.
Colocando-o como um país de desigualdade social sem solução aparente.Enquanto isto,ouvimos promessas e mais promessas em campanhas políticas de pessoas inescrupulosas que apenas aproveita da situação dos mais pobres para dar mais um golpe de misericórdia, tirando deste pai de família seu simples legado.

Anônimo disse...

Paulo Cézar Jubé de Souza

Anônimo disse...

Parabéns Helena, está realidade escrita nos fortalece em não desistir de insistir para ter um Brasil melhor. Um Brasil que a mãe gentil, realmente seja gentil e que nossa Pátria realmente seja amada. E são pessoas como você que faz a diferença. Um abraço 🥰

Anônimo disse...

Brilhante Coronel! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

Anônimo disse...

Maravilhoso . Parabéns Cel Damásio!!!!

Anônimo disse...

Minha querida amiga amiga Cel. Brilhante como sempre.

Anônimo disse...

Belíssimo texto e escrita contemporânea capaz de fisgar qualquer leitor ou leitora . Parabéns

DiMagalhãesArteVida disse...

Parabéns! Helena, mais um texto maravilhoso, ansioso para o lançamento do livro, que tal uma aquarela para a capa.

Anônimo disse...

Obrigada comandante. Um luxo passar por seu crivo nestas linhas da saga do Tião. Aprendo com o senhor.

Anônimo disse...

Obrigada primo

Anônimo disse...

Paulinho, você é carinho. Obrigada

Anônimo disse...

Promessa é dívida. Ainda mais vinda de um artista maravilhoso como você.

Anônimo disse...

Uma capa com sua aquarela, seria um luxo.

Anônimo disse...

Talentosa demais!!Amo ler seus textos!!🫶🏻

Anônimo disse...

Dolorosamente lindo! Será que um dia terá fim? Parabéns, gostosa leitura 👏👏

Anônimo disse...

Parabéns pela reflexão Helena, vida em anonimato que não enxergamos, há um nome, uma história, uma vida.

Ednopr disse...

Parabéns pelo excelente texto de leitura fácil, agradável, envolvente, reflexivo, atual e muito bem contextualizado.

Anônimo disse...

Pobre Tião!!!!
Tião, retrato de muitos "Tiões" desse mundão.
Parabéns, Helena, por descrever tão bem essa horrível situação!!!

JOSE ROBERTO PORFIRIO disse...

Como sempre, uma bela história para preencher o nosso tempo!

Anônimo disse...

A desigualdade social é uma pauta muita séria!!!! Parabéns pelo texto.

Anônimo disse...

Querida Helena, ainda não conhecia seu trabalho como escritora.
Fiquei sinceramente encantada e grata após ler esta excelente obra literária.
Parabéns!!!
Não sei se tem livro publicado: se sim, quero
obter um exemplar; se não, espero que publique logo, para divulgar seu belo trabalho.
Espero encontrá-la no próximo mês em Goiás para podermos conversar bastante.
Foi um grande prazer conhecê-la.
Bjo 😘

Anônimo disse...

Você é muito generosa Valéria. Obrigada.

Anônimo disse...

Meu diretor amigo Porfirio, obrigada

Anônimo disse...

Obrigada Cmt

Anônimo disse...

Texto leve e gostoso de ler, apesar do sério problema que relata: a ganância de uns em desfavor de tantos! Lutas sociais aparentemente inglórias, mas o caminhar da humanidade mostra que não são tão inglórias assim. Parabéns, minha amiga querida, minha ex colega de faculdade a quem guardo na mais alta conta! Sigamos transformando “inglórias” em glórias!!

Anônimo disse...

Nossa cmt! Fico acabrunhada diante de sua fala. Tomo também o lema do cel Aragão: não sei se mereço tamanha distinção, mas acolho com humildade e carinho

Anônimo disse...

Gratidão primo

Anônimo disse...

Obrigada querido. Gratidão

Anônimo disse...

Parabéns muito lindo

Anônimo disse...

Prezada CMT e amiga tu sabes que te admiramos, você tem um legado de Cora Coralina! Parabéns pelo texto tão lindo e repleto de reflexão!

Anônimo disse...

Parabéns Cmt ,tenho um orgulho enorme de ter conhecido a senhora e fazer parte da sua história, sem dizer no tanto que te admiro! Amei a istoria! Posso dizer que sou um dos Tiãos da vida!!!

Anônimo disse...

Gratidão. O que nos inspira são os amigos presenteados pelo caminho

Anônimo disse...

Eu quem sou presenteada nestes bons encontros que a vida nos concede! Obrigada , gratidão

Anônimo disse...

Parabéns minha preciosa amiga Helena Damásio, a quem fico mais á vontade chamando de Dadá…lindo texto,parece que fechando os olhos vejo a saga do Tião. Gostaria de fazer uso desse maravilhoso texto.Me dê um sinal..✋🙂

Anônimo disse...

Opa..o comentário acima, é do seu fã ..o Viana.🤓

Anônimo disse...

Publicado já te pertence também. Gratidão

Anônimo disse...

Até parece que eu não sabia Zezuis Viana kkkkk

Nilza Godinho disse...

Sempre te admirei como ser humano e como pessoa .
Voltada pra sempre pra beleza de Goias .Lindo texto

Maria Aexandrina de Castro disse...

Que belo e sensível texto! Que escrita gostosa de ler!!

Anônimo disse...

Parabéns a senhora !👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

Anônimo disse...

Parabéns minha comandante! Belo texto...uma crítica da vida no compo com leveza e toda a sabedoria que a senhora sempre teve. Tenente Lasliane

Anônimo disse...

Parabéns Lídima representante da fina cultura Goiânia. És motivo de orgulho para os filhos de Vila Boa dos Goyazes

JoseDominggos disse...

Parabéns Lídima representante da fina cultura Goiana. És motivo de orgulho para os filhos de Vila Boa dos Goyazes

Responder

Anônimo disse...

Parabéns a coronel Helena 🤩

Anônimo disse...

Nasce uma Nova Cora Coralina.

Anônimo disse...

Parabéns Helena Damásio!! Através das palavras, bem retrata o âmago dos seres, no seu cotidiano da vida. Forte abraço, e muito sucesso. Cláudio Lopes.

Anônimo disse...

maravilhoso esse conto!

ALEXANDRE FREITAS ELIAS disse...

Parabéns Coronel Helena Aparecida Damásio, por retratar de forma poética, na personagem TIÃO, histórias recorrentes no cotidiano brasileiro...

Anônimo disse...

Quando crescer quero ser igual você , maravilhoso

Anônimo disse...

Prezada Coronel Helena Aparecida Damásio,

Seu texto "Chão de Tião" é um retrato profundo e emocionante da luta de tantos homens e mulheres do campo. Tião não é apenas um personagem, mas um símbolo da resistência, da teimosia de quem se recusa a abrir mão de suas raízes, mesmo diante das injustiças e da força esmagadora dos poderosos.

A forma como a senhora descreve a terra, o fogo e a batalha diária pela sobrevivência nos transporta para esse cenário de dor e esperança. Cada palavra carrega o peso da realidade, e a história nos faz refletir sobre quantos "Tiãos" já foram esquecidos, arrancados de suas terras sem justiça ou despedida.

É uma narrativa forte, que emociona e incomoda, como deve ser. A senhora dá voz a quem raramente tem espaço para contar sua própria história. Agradeço por compartilhar um texto tão bonito e necessário.

Com admiração,

Walber Rufino
Presidente da Almep

SILOMAR ATAÍDES FERREIRA disse...

Que maravilha de texto, nos leva a uma reflexão que sabemos que ocorre todo dia em nosso País. Muito ilustrativo uma leitura que passa a imagem de cada palavra. Forte Abraço Helena!

Anônimo disse...

Não conhecia esse seu talento. Adorei. Continue nos presenteando dessa forma. Uma rica literatura.

Anônimo disse...

Minha amiga de longas datas, como é preciosa sua escrita! Você consegue envolver o leitor a tal ponto, que nos sentimos parte do texto. Muito envolvente! Parabéns, parabéns!!!!

Anônimo disse...

Minha comandante, que maravilha, um texto que agrega sutileza, profundidade e qualidade, não pode ser lido tem que ser degustado. Parabéns. Prof. Camilo

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