Como uma mortalha, abriu-se ruidosamente o tecido que assentou em câmera lenta sobre o gramado seco. O professor Luciano ajoelhou-se doloroso, observando a escandalosa procissão de palmípedes que deixavam o lago, determinados a pedir-lhe migalhas. Frustraram-se, mas não sem revolta, pois a sacola cheia de comidas não foi aberta de pronto. Luciano, entrelaçando com força os dedos das mãos suadas, suspirou fundo, mirou o buritizeiro e foi direto ao assunto:
“Hoje, ao ver-te, pela primeira vez notei quão embaçados já estão teus olhos. Via como é de verdade e não como a lembrança travestida e magnética, que preencheu meus dias vazios e desesperançosos. Hoje, ao ver-te, assim vacilante, esfarelando tua existência ao vento quente de setembro, desejei poder juntar todos os teus micro pedaços e transformá-los em algum objeto de valor inestimado, como um amuleto ou um pingente, que pudesse guardar junto ao peito, até a morte me fritar toda matéria.
Poderia eu aprender alguma ciência humana capaz de reunir as frações tuas, que espalhas junto ao pé do buriti, teu suporte, e pela superfície desse lago de caravelas coloridas? Talvez, mas creio já não haver mais tempo. Por isso estou aqui hoje, Valentina. É o nosso último piquenique. Vim despedir-me.
Sim, estou de mudança. Vou para o sul... não contei antes por que... nem eu sei direito. Acho que de alguma forma reservei esse espaço de grama e sombra para guardar a parte de mim que não queria seguir adiante. Visitar-te era como tornar a vê-la, os mesmos olhos, o mesmo sorriso. Lembro-me vividamente de quando vim parar aqui, com o peito despedaçado e minhas águas descendo sem barreiras. Incrédulo. Havia perdido minha princesa. Caminhei sem rumo engasgando um grito de ódio que subia me queimando vivo. Então, o fogo morreu na boca, acalmou-se. Vi um aniversário no parque, confetes coloridos metálicos explodiram no espaço, passaram em frente ao teu rosto, estampado em cartaz, amarrado aos buritis, olhando para mim. Fui abduzido da morte.
Era noite quando pisei o asfalto, sem ter noção de quanto tempo permaneci imerso em um mundo paralelo. Olhares fixos, o meu e o teu. Fui para casa, sentir o sabor, o cheiro e o frio da ausência em cada canto, mas prometi retornar para ver-te, e assim o fiz. Tua festa teve fim, porém, ficaram os confetes metalizados entranhados na grama. Ainda hoje posso ver alguns em meio às folhas secas, papéis de bala e canudos. Ficaram também as caravelas sobre o lago, brancas, transparentes, coloridas. De tudo que ficou, no entanto, o teu rosto entre os buritis era o que sempre deveria estar ali.
Espero que me perdoe por abandonar-te à mercê do clima cada vez mais estranho desta cidade. Sei que és invulnerável às pestilências trazidas pelo vento sujo e quente que fazem escorrer os narizes. Mas, a chuva de fumaça de carros vai-te corroendo as cores e o brilho do sorriso. Talvez agora me entendas melhor, pois corroído fui eu pelo ácido da decomposição do amor arrancado à força por um vírus. Morreu minha filha, enferrujaram-se meus dentes, embaçaram-se meus olhos, agarrou-se meu desespero a um enfeite de aniversário esquecido. Não posso mais. Adeus, Valentina.”
Como quem assiste à morte do amor pela segunda vez, Luciano soluçava em descontrole, levantou-se e saiu com as mãos no rosto. Correu sem olhar para trás, sem levar nada, sem dar pelas moelas incrédulas da plateia penosa com expressão de “E a comida, cadê?!”. Os gansos, sempre mais ousados, ao suporem que Luciano não voltaria, se adiantaram contra o pacote. Em procissão acelerada, patos e marrecos se achegaram buscando espaço, acompanhados de perto por pombos e curicacas. Foi um banquete bem servido! Barrigas cheias, dispersaram-se em algazarra.
Um pé de vento veio subindo poeira por entre os prédios, invadiu o parque e pegou pela mão a sacola rasgada. Fez dela a primeira bailarina de um corpo de baile composto por folhas, confetes laminados, embalagens de picolé e cinzas de cigarro. Um espetáculo magnífico que se desenvolveu bem diante dos olhos desbotados de Valentina, cujo grande finale deu-se na superfície do lago, onde a sacola pousou como o cisne branco e coroou-se outra secular caravela de águas urbanas.
Ygor Klay Morais Leite - TC PM
Acadêmico Fundador da Cadeira nº23
Um comentário:
Crônica bonita. Descrita com leveza e ritmo cadenciado. Parabéns ⚘️
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