Toninho entrou pela sala aos pulos e com olhinhos curiosos. Ávido pela resposta. Hoje o pai do Avelino que estuda comigo disse: ah! Você que é o neto do finado cabo Elias? O herói da Chupa Osso? Todo bombeiro é herói Pai!? O senhor é herói também?
- Só se for o herói do cata gatos de madames em árvores. - Se prontificou Augusta, esposa de Celmo, diante da indagação do filho ao pai. E emendou:
- Gato de pobre sabe dar seus pulos onde quer que vá. Já os das madames mal sabem miar.
Celmo nunca teve pendenga para definir seu destino. Este já havia sido traçado na sua infância.
Seu pai era bombeiro, assim como seu avô, bisavô, alguns tios e primos. Era ofício de família .
Corria no sangue, no coração, na alma.
Mesmo quando na adolescência, a família foi surpreendida com a triste notícia da morte do seu pai. Cabo Elias adorava o seu ofício. Sempre voluntário para resgatar, salvar, auxiliar.
Numa noite de festas de São João, esparramadas por vários setores da cidade, o ofício era ficar à espreita para coibir o uso de balões juninos que alguns jovens e mesmo adultos insistiam em burlar a lei. Brincadeira secular que persistia perdurar, mesmo diante de tantos riscos e tragicidades anunciadas. Um mapa de tristeza de muitas famílias que perderam casas, pertences, até que os balões foram proibidos por lei. Mesmo assim, furtivamente, grupos de pessoas se reuniam para soltar os balões pelos cantos da cidade. Era uma disputa insana. Cada qualquerendo soltar um balão maior que o outro.
Um ato maravilho de se ver. De fazer olhos brilharem de alegria. Se um balão gorasse, era motivo de chacota por dias pelos participantes. Gritos frenéticos eram ouvidos quando os balões enfeitavam o céu, rumo ao seu destino final. Para os participantes imprevidentes, o momento apoteótico, definia qual grupo seria campeão. O vencedor era aclamado quandorestasse apenas um balão no céu. O último a queimar!
Populares saiam de suas casas para festejar o feito no céu, torcendo para que o vento não mudasse a direção do balão para o lado de seu bairro. Contanto que o artefato não viesse em direção de sua casa, o evento era motivo de aplausos, admiração e aceitação. Que fossem em direção a outros cafofos da cidade.
Para os bombeiros os balões eram motivo de apreensão.
Quando um balão sobe os bombeiros torcem para ganhar grande altura. Isto porque quando queimar, se tiverem sorte, quando atingir o solo as chamas já findaram na trajetória; torcem pra cair em área de terra batida; torcem pra cair em rios; torcem e torcem atemorizados.
Dia tranquilo, cabo Elias dá um último beijo em Celmo. Ia cumprir escala de vinte e quatro horas corrida.
-Te vejo amanhã amigão.
- Bença pai. Te espero pra montar o carrinho rolimã. Álvaro e Heitor virão prumode da gente pegar ladeira abaixo.
-Tá certo. Então trarei mertiolate e band-aid também. Deus te abençoe filho.
A noite caiu serena abafando os últimos raios solares do dia. Soldado Francisco já clamava por ação.
- São quase sete horas. Queria estar dançado um forró na rua do Fogo ou rua do Capim. São as melhores festas juninas da cidade.
- E mais barulhentas. Povo solta foguetes a noite inteirinha. Respondeu Cabo Elias.
- Queria estar lá de escala. Aqui o tempo não flui. Capenga segundos como horas. Ave paciência.
Ver as moçoilas enviesando olhos pra nós. Estas meninas adoram nossas indumentárias.
- Eita se dona Suzana te ouve!
- Mulher arriada a minha. Dia todo em casa sem fazer nada e quando chego fica a me aperriar.
- Sim. Devia te pôr num altar. Com certeza você paga uma boa serviçal pra lavar, arrumar casa,
passar e cozinhar. Tô até vendo.
- Mas o senhor entendeu o que eu disse.
- Entendi não. - Disse cabo Elias sorrindo solto . Instante em que soldado Francisco estatalou olho com incredulidade.
- Vixe cabo, olhe aquilo! Não são foguetes. São balões?
- Soltaram por agora. Nesta seca. O cerrado vai esquentar hoje. Cabeças de minhocas. Tomara
que não ocorra tragédia.
- Pela direção tomada, tão indo pros lado do Morro Canta Galo.
- Parece mais pro Alto do Santana .
- Tomara que não. As ruas são estreitas. Caminhão d'água não passa em pontos da rua Chupa Osso. Arguiu Francisco já desejando o marasmo das horas que anteriormente abominava.
- Atenção pessoal!
Sargento Agnelo entrou no ambiente e começou a definir as ações a serem adotadas.
- Quero a princípio colocar um grupo com viatura pequenas próximo o Santana e Canta Galo para retirar moradores. Cabo Mota, Soldado Francisco e soldado Barroso irão pras proximidades do Canta Galo. Cabo Elias, Soldado Mesquita e soldado Macedo vão pro Santana.
Levem abafadores para conter pequenos focos. Se a coisa esquentar pra valer e ficar feia, vamos ordenar para evacuar o local. Teremos apoio para levar o povo pra a quadra de esporte.
- Vamos torcer pra virar procissão do capeta no morro.
Apontou cabo Mota que já tinha presenciado cenas iguais a que ocorria. Independente da soltura dos balões juninos, fato que não ocorria há quase quatro anos, as queimadas no cerrado eram aguardadas ano a ano. Nunca causavam danos humanos. O fogo no cerrado podia iniciar por fatores naturais, através do acúmulo de biomassa seca, alta temperatura, outros fatores que por sinal, beneficiavam o bioma por contribui para germinação de sementes. Todos os anos osmorros ficavam com linhas verticais ou horizontais de fogo propagando morro adentro, ou afora. O trabalho de extinção percorria dias contados de uma a duas semanas. A cidade recebia fuligens e fumaças suportáveis. Mas à noite, as mães aproveitavam dos clarões no morro para aquietar as traquinagens dos filhos, com a narrativa de que ali acontecia a procissão dos capetas.
Que os capetas estavam no morro com tochas de fogo vigiando a cidade. Queriam pegar e levar pro inferno as crianças que desobedeciam as mães. Os capetas não gostavam de crianças obedientes. As crianças temiam mais a procissão do capeta aos dias de quaresma com as mulas sem cabeça e lobisomens.
- Bem cabo, não podemos contar com torcida. Todos aos seus postos.
Findou o Sargento Agnelo.
Ao Chegar na Rua Chupa Osso, Cabo Elias reforçou o grupo de combate a incêndio do Tenente
Valente. O fogo não subia morro adentro. Descia em altas labaredas ameaçando consumir as pequenas casas grudadas do Chupa Osso. Contribuía ainda os quintais com cercas de madeiras, galinheiros e mata seca do lado de dentro e fora. Por prevenção, retiraram os moradores das casas. Estes, insistiram em permanecer à curta distância para ver o árduo trabalho dos bombeiros e voluntários para evitar que as labaredas chegassem nas casas.
Em dado momento, uma mulher chega gritando aos berros. Um de seus sapatos havia quebrado o salto, o que a deixava manquitola. O rímel e contorno dos olhos desciam pela face em borrão de carvão. O batom vermelho melecava desfigurando os lábios. Devia ser bonita. Mas naquele momento se assemelhava a um espectro.
Foi então que tentou romper a barreira.
Contida, continuava em gritaria e falas ininteligíveis. Foi aí que sua amiga narrou que o desespero provinha do fato daquela senhora ter trancado seus dois filhos menores, de oito e seis anos, dentro da casa que ficava a uns quinhentos metros dali, para dançar forró na festança junina da rua do Capim.
Cabo Elias conhecia a área, sabia onde ficava a casa. Tomou da viatura um machado e marreta de uns dez quilos e rompeu marcha para o lugar apontado.
Tenente Valente ao perceber tentou dissuadi-lo.
- Cabo, retorne ao seu posto. É uma ordem.
Cabo Elias continuou sua marcha. Sempre foi disciplinado e respeitoso com seus superiores, pares e subordinados.
- Tenente, eu vou tirar aquelas crianças da casa. Na correria a mãe perdeu as chaves. Hoje ninguém morre aqui.
Deu exemplo a ser seguido por outros companheiros de farda e voluntários. Porém, as chamas já consumiam parte da frente da casa e laterais. Gritos de crianças eram ouvidos. Todos recuaram. Cabo Elias seguiu os gritos e num esforço incomum, golpeou freneticamente a parede e finalmente rompeu um buraco. Dali pode puxar a criança mais jovem e pediu para que a mais velha passasse pelo buraco. Soldado Mesquita tomou a criança nos braços e saiu correndo do local enquanto Cabo Elias diante da resistência da criança em sair, entrou no ambiente que já anunciava desgraça. Viu que o jovenzinho franzino chorava e dizia: Tire minha bisa. Ela não anda. - foi então que Cabo Elias avistou a senhorinha assustada em uma cama no canto daquele quarto. Pegou a criança quebrando sua resistência e saiu para entregá-la aos companheiros.
As crianças choravam de braços estendidos para a casa em chamas. Elis retornou contra todo bom senso e rogos dos parceiros .
- Elias não vá. O teto está cedendo!
- Vou tirar ela de lá. Olhei nos olhos dela. Ela me espera. Hoje aqui, ninguém morre. Não nesta casa. - E novamente entrou casa adentro. Estalos e desmoronamento começaram a ser ouvidos e vistos. Lá dentro, já com a senhorinha nos braços, cabo Elias foi surpreendido com o despencar da cumieira que acertou a ponta em parte de sua cabeça. Estonteou e continuou sua saga. Ao sair, andou uns vinte metros e tombou ao solo. Seus colegas vieram em socorro.
- Ela está viva? ele perguntou com o rosto tomado em sangue. Soldado Mesquita viu que a anciã estava melhor que seu parceiro. Quando Cabo Elias antes de perder os sentidos implorou: Hoje ninguém morre aqui. Vamos embora. Me tire daqui Mesquita.
Levado ao hospital, veio a falecer duas horas após o fato. Foi sepultado no outro dia em grande solenidade, aclamado como herói. Teve ainda discurso do prefeito, do seu comandante direto, Tenente Valente, do Padre e do Coronel Gaspar que veio da capital para homenageá-lo. Tal feito deu motivo para ter sua foto em destaque na galeria dos heróis no Quartel dos Bombeiros da cidade e da capital, sendo ainda notícia de jornais.
Celmo prometeu retirar as rodinhas da bicicleta e levar Toninho para uma peleja de coragem com a bicicleta na praça do largo da Prata. Sendo feriado, a praça fervilhava de crianças e alguns poucos pais. Toninho dominou sua montaria sem titubear. Ali estava todo tomado por confiança e satisfação. Intimamente, Celmo estava orgulhoso pelo feito do filho, quando viu uma criança de mesma idade desembestar para fora da praça em direção à ladeira que findava na ponte do Rio da Prata. Rio profundo e de correnteza forte. No cenho desta, boca aberta e olhos esbugalhados em pavor. A pavorosa tomou conta da praça. Todos parados com mãos nas cabeças ou bocas em gritos. Toninho chorando. Celmo estava em outra ponta da praça, paralelo ao desenfreado ciclista uns vinte metros. Até hoje em sua narrativa não sabe contar como de fato conseguiu em corrida alucinada pular e segurar a criança que bateu com a bicicleta na mureta da ponte, alçou voo sobre esta e foi agarrado por ele, enquanto o veículo despencou rio abaixo. Celmo e a criança permaneceram por segundos caídos no chão da ponte, próximos da mureta. Levantaram ouvindo aplausos das crianças, pais e populares que assistiram toda cena.
Uma criança gritou: olhem, o homem é um super-herói! E Toninho respondeu: E é meu pai.
Abandonou a bicicleta e correu ladeira abaixo com braços abertos para abraçar seu pai. Ficaram assim por instante. Celmo, como todos os tolos pais, ficou imaginando que o ocorrido poderia ter acontecido com o seu filho e orou a Deus em agradecimento. Toninho já estava cheio de novos questionamentos. Tomou o rosto de seu pai entre as pequenas mãos examinando minuciosamente.
- Pai , o senhor é um herói? O senhor vai morrer igual o meu avô?
- Ninguém morreu aqui hoje meu filho. Heróis não morrem enquanto forem lembrados. O herói hoje é você que venceu as rodinhas da bicicleta. Vamos pegar ela e voltar pra casa. Sua mãe nos aguarda.
- Quando crescer posso ser bombeiro pai!?
- Claro. É ofício de família
Helena Aparecida Damásio - Coronel PM
Acadêmica Fundadora da Cadeira nº
41 comentários:
Oficio de Família....
Parabéns pelo conto minha amiga Coronel Helena Damásio, e se me permite, Dadá...
Você com sua sensibilidade à flor da pele, sabe como e onde colocar as palavras e delas fazer uma explosão de sentimentos, como por exemplo na frase: "Hoje ninguém morre aqui."
Vou pedir para o Chefe do EM do CBMGO, que viabilize a publicação do seu conto na página oficial dos Bombeiros .
Abs.
Coronel Alves
Obrigada sr Cel. Suas palavras são motivadoras. Incentivo para continuarmos rabiscando palavras nas páginas de vida de quem as identificam. Sou só gratidão.
A missão de repassar o ofício está posta.
Parabéns pela sensibilidade em colocar as palavras em seu devido contexto. Isto é uma arte!
Parabéns pelo conto
Parabéns, Cel Helena pela iniciativa de expressar o seu talento, colocando-o a nossa disposição, assim incentivando a leitura e o conhecimento. Obrigada. Celia Lima.
Obrigada Luis Antônio. Um exercício de entretenimento pessoal que compartilho com os amigos.
Obrigada pela gentileza
Obrigada Celinha. Suas palavras são Temperos de carinho e alegria
Parabéns, Helena, por nos trazer mais esse exemplo através da arte da escrita. Motivo para nós de festa e encanto, sucesso e Deus a abençoe
Sim sra ....kkk
Parabéns!!!
😊obrigada!
Obrigada⚘️⚘️⚘️
🌹obrigada
Helena, pessoa de sensibilidade incrível e contadora de histórias reais! Parabéns pela iniciativa!
Boa tarde querida. Que belo conto…O ofício de ser bombeiro é essencial para salvar vidas. Devemos homenagear e agradecer pelos serviços prestados com louvor. Abraços ❤️
Paulo Géa 👇
Obrigada WepLee
Obrigada Mestre
E vivemos nas letras pequenos devaneios para criar mundos paralelos.
Obrigada !!
Verdade. Ser Bombeiro é um ato de generosidade à disposição da comunidade em momentos de aflição.
Mt bom!
Obrigada 🌹
Parabéns amiga querida,vc sempre com suas Ricas palavras.
Parabéns Helena!! Vc é uma pessoa muito sábia e generosa!!
Ofício de família você construiu seguindo os passos do seu pai herói!
Herdou e honrou seus pais, agora, que a geração que segue ,siga o ofício de família que tens honrado !
Bela história! Leitura! Vire livro!
Obrigada. 🌹
Obrigada 🌹
Já tem título. Falta organizar os arquivos e entregar a quem gosta de navegar em mundos paralelos, acaso o conto os encontram, ou acaso se encontram nos contos rsrrsrs🥰🙃
Verdade. Segui passos tropeçando no acaso. Fui agasalhada e entendi o quanto é os porquês que meu pai se orgulhava tanto. Assim ocorre com várias outras famílias. Formam uma identidade. Nasce uma necessidade de bem querer de doar e de se sentir realizado. Um contágio prazeroso e de certa firma cumplicidade. Obrigada 🌹
Verdade. Foi fato motivado por tropeço do acaso. Mas na lida diária, foi fácil entender o respeito e apego que meu pai tinha e como o ato de servir e proteger me contaminou. Assim também o é em ofícios de famílias em diversas profissões. Cria-se uma identidade, uma cumplicidade, um sentir prazeroso de realização e felicidade.
Parabéns Helena, com certeza será um livro de sucesso!
Obrigada🥰
Parabéns e muito sucesso Helena!
Obrigada 🌹 🌹 🌹
Parabéns minha querida comandante, brilhante como sempre.
M. Tavares.
Que conta um conto, encanta a tantos!💝 Parabéns amada Helena, que delícia poder me deleitar com suas narrativas! Aguardando as próximas 🥰
Corrigindo: Quem ...
Obrigada Rosimeire Santana. Amiga do curso de Letras da Faculdade de Filosofia Cora Coralina. Sempre meiga e muito carinhosa. Bjus coloridos no ❤️
Perfeito!
Cara amiga da Cidade de Goiás, Cel Helena Damásio, que também resulta, no DNA, de um oficio de família.
parabéns pela forma simples e emocionante de expressar seu conto.
Super talentosa essa mulher parabéns Helena! Te admiro muito!!👏👏👏👏♥️
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